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03 Setembro 2021

A Sagrada Escritura: um mundo onde muitos mundos se encontram

Escrito por 

                                                                                          Víctor Ml. Mora Mesén, OFM Conv.

 

     Ao contrário do que se defende em círculos com pouco conhecimento da literatura que conhecemos como Bíblia, o pensamento unitário ou eminentemente doutrinário-axiomático está totalmente ausente nos livros que a compõem.[1] É importante sublinhar um fato, a Bíblia é composta por uma grande variedade de textos, cujas características diferem: datas de composição, estilos e formas literais, materiais, temas, ideologias, processos editoriais e ainda foram escritos em diversas locações. Na verdade, esta coleção inclui textos que foram compostos aproximadamente do século V AEC à primeira metade do século I EC.

     A problemática do surgimento desta coleção e dos problemas que cada livro apresenta para a sua compreensão e para a delimitação histórico-cultural do seu contexto vital, é muito complexa e diversificada. Narrações, leis, pronunciamentos proféticos, hinos, cânticos, orações, poemas, cartas, biografias antigas (as chamadas "Vitae" nos estudos greco-romanos) e muitos outros gêneros literários, são complementados por diversidades de óticas, polêmicas, símbolos, costumes, relações entre povos e concepções religiosas. Por que essa complexa coleção foi formada e por que ela é sustentada como fonte de inspiração para as religiões judaica e cristã (sim esquecer outras influências da Bíblia em diferentes manifestações religiosas, como o Islã, ou movimentos religiosos não necessariamente confessionais), ou simplesmente para pessoas marginais a qualquer tipo de fé?

     Perguntar-se por estas questões é mais que legítimo, pois a Bíblia tinha servido a muitos propósitos, que vão desde o desenvolvimento das mais belas manifestações do ser humano (não solo como experiência religiosa pessoal ou comunitária, de humanismo e doação, mas também como inspiração estética, literária e mesma política), até posições intransigentes que causaram muitas injustiças. Mas não é culpa da Bíblia que tinha sido manipulada, porque não é uma obra nascida com um proposito unidirecional, ou seja, um escrito com um marcado interesse ideológico absoluto. E não é que estão ausentes ideologias nesta coleção de livros [2], mas sim que a dinâmica literário-cultural [3] desta coleção oferece um espaço de interpretação irregularmente poliédrica: com pontos de contato, distanciamentos e perplexidades, ambiguidades e mesmo contradições. Mas qual é a origem dessa complexidade e por que, em determinado momento da história,[4] lhe foi reconhecida uma identidade unitária?

A experiência de vida e o encontro com Yahweh

     Se quiséssemos encontrar um ponto de contato entre todos os livros desta coleção, não existe dúvida de que o que os aproxima é a referência à vida humana. É falso indicar que o ponto fundamental em todos os livros é Deus. Na verdade, o Cântico dos Cânticos não faz menção dele. [5] Em muitas narrativas, as vicissitudes dos personagens principais são descritas, mas apenas em algumas passagens a intervenção de Deus é direta. A melhor descrição que se pode fazer dos textos é que são obras que se referem à experiência da vida humana. Nela, porém, também ocorre um encontro com Deus.

     Como esse encontro nos é apresentado na Bíblia? Como surpresa e provocação. É interessante que todos os textos nos quais é feita referência direta a Deus, primeiro tenham uma descrição das circunstâncias vitais em que o encontro com ele ocorre. A Bíblia se apresenta a nós como história, [6] mas não como História de Salvação, como se costumava dizer, mas como espaço onde se realizam uma multiplicidade de encontros. Esses encontros ocorrem entre indivíduos, nações, culturas, costumes e religiões. Por esta razão, também encontramos tensões humanas no nível doméstico ou comunitário; pressões políticas (com seus conflitos irremediáveis: lutas, sede de poder e guerras); choques culturais que geravam a rejeição de certos grupos; influências do pensamento oriundas de culturas com maiores recursos econômicos, que permitiam uma maior produção cultural; conflitos religiosos entre praticantes da mesma religião ou desacordos com religiões de outros povos; e muitas outras coisas.

     É nessa vida experimentada que surge de repente uma presença que se torna palavra e promessa. A esta altura, o leitor destas linhas terá percebido que não estamos seguindo simplesmente a ordem dos livros e histórias que aparecem na apresentação atual da Bíblia. Escolhemos outra forma de descrever sua identidade, para tentar situar no âmbito da composição a evolução das ideias e conceitos finalmente expressos na ordem canônica da coleção. Isso por duas razões, a primeira delas é evitar cair na armadilha de considerar os textos bíblicos como obras imutáveis ​​desde sua criação original. Na verdade, os livros passaram por várias etapas em seu processo de composição, porque uma tradição escrita também suscitava novas interpretações que pretendiam atualizá-la de acordo com uma realidade em mudança.[7] Em outras palavras, as provocações da história e o encontro com Yahweh fizeram com que os editores das obras bíblicas fossem sempre desafiados a revisar algumas visões que eram deficientes para uma compreensão mais abrangente de sua própria experiência de vida.

     Sem a experiência de vida, o encontro com Yahweh seria inócuo e até irrelevante. Talvez este seja o ponto central para entender o porquê do caráter unitário da coleção. Somente aqueles que são capazes de contemplar a vida, com suas inúmeras voltas e reviravoltas, pode estar aberto à experiência de algo que lhes supera e transcende. Esta sensibilidade especial é o que está na base do encontro com Yahweh, que longe de ser uma espécie de consolação fácil o de resposta existencial indiscutível para a existência, se manifesta sempre como una proposta o uma provocação para empreender um caminho em direção ao futuro.

     Neste ponto, porém, teríamos que fazer uma pausa para nos perguntar qual foi a concepção de história que os autores dos textos bíblicos tiveram. Certamente não é uma concepção linear e evolutiva tipicamente ocidental e moderna. Enquanto para nós o futuro é visto como uma meta alcançável, para a mentalidade semítica é algo inexistente. O que existe é o que é vivido, e o que aconteceu é algo que se contempla para deduzir os destelhes do que poderia ser a vida humana. Por isso, a experiência está na base do pensamento bíblico. Sem ele, nem mesmo é possível falar de Deus. Para os autores bíblicos, é na construção da memória da experiência vital que se dá o processo de discernimento do real. O pensamento utópico moderno não é típico do pensamento bíblico. Mas também não é o relativismo ou a impossibilidade de sonhar com o futuro. O passado nos permite vislumbrar os caminhos da consolidação do humano ou do fracasso nascido da injustiça e do egoísmo.

     Em que sentido, então, o encontro com Yahweh é uma provocação? Em que a experiência precisa ser reinterpretada a partir das possibilidades do humano, não da aceitação submissa do fracasso. Yahweh amplia o olhar para compreender a experiência e possibilita a construção de uma nova memória, que se baseia na contemplação progressiva dos fatos que demonstram o sucesso do empreendimento de liberdade e justiça.

Yahweh, o Deus que guia para a liberdade

     Certamente, a experiência do êxodo é a chave interpretativa da religião judaica. Os membros do povo judeu precisavam basear sua própria identidade como memória, não só de suas origens, mas também de toda a humanidade. De onde vem essa necessidade de universalismo? A experiência histórica de Israel foi marcada pelo surgimento da monarquia e pela constituição de uma nação. A figura do rei era um símbolo importante como garantia da unidade de um grupo de tribos com diferenças mais ou menos definidas. Mas a divisão do reino davídico-salomônico em duas nações, assim como a conquista do reino do norte pelos assírios e a destruição do reino do sul pelos babilônios, mergulhou a nação israelita em uma grande crise. A monarquia, que inicialmente tinha promovido o culto de Yahweh como um deus nacional, relativizou e condicionou a sua coerência religiosa a seus interesses políticos e econômicos, ou ao desenvolvimento de alianças estratégicas para aumentar a sua influência na região palestina. Cultos a outros deuses foram promovidos, porque os casamentos de conveniência eram celebrados com membros de outras monarquias vizinhas que adoravam outras divindades.

     Uma tentativa de reforma nacional, que pretendia usar a centralização do culto ao Senhor em Jerusalém nos dias do rei Josias, terminou desaparecendo com a morte do monarca em uma guerra contra o Egito e, alguns anos mais tarde, ela provou sua inutilidade quando foi conquistada Judá por Nabucodonosor. O exílio forçado pelo império babilônico, levou as elites intelectuais e religiosas para a Mesopotâmia a repensar o que tinham vivido e a se perguntar por que Yahweh parecia mais fraco do que os deuses de outros povos. Daí se originou uma intuição fundamental: o ser humano era o verdadeiro destruidor da harmonia que Deus tinha estabelecido no mundo. O desejo de ser como Deus levou a relativizar a vida humana, a aperfeiçoar a arte da guerra, do conflito e encontrar oportunidades para sonhar com a grandeza. Isso inevitavelmente produziu o caos na história, os seres humanos não se entendiam mais e era preciso recomeçar.

     Paradoxalmente, essa intuição nasceu da leitura de um mito criado pelos próprios conquistadores (o Gilgamesh). Mas não se tratava de uma cópia, mas de uma releitura da própria história. O dilúvio representou aquela era de caos que eles estavam experimentando, mas isso não era absoluto. Na maioria das vezes, Israel experimentou a confusão gerada pela corrupção e pela utilização de uns e outros. Os profetas, membros de clãs de proprietários de terras ou círculos sacerdotais não determinados pela influência dos reis, sempre deixaram em claro a necessidade de retornar às antigas raízes do povo: o período em que Deus os conduziu à liberdade.

     As brumas do tempo não permitem uma reconstrução precisa das origens do Yahwismo. Os acontecimentos originais não estão ao nosso alcance por falta de provas documentais, mas temos a sua reinterpretação em vários níveis literários, que correspondem também a diferentes visões de mundo. Moisés, o salvo das águas, torna-se o enviado de Deus para enfrentar o poder do Faraó, que se considerava um deus vivo.[8] O livro do Êxodo nos lembra que a divinização dos poderes terrestres é apenas uma quimera, que inevitavelmente cai quando a ação de Yahweh se manifesta. Não é de estranhar que as obras teológicas que fazem esta releitura tomem as tradições exódicas com tanta força. Os exilados sabiam que o Egito tinha entrado em uma época de crise, que a Assíria caiu nas mãos dos babilônios e que este outro império também caiu sob a Pérsia. A conclusão para eles foi clara: quem governa o mundo dos homens, foi quem recebeu a aprovação do único que está acima de tudo, porque todos dependem dele, Yahweh.

     A derrota dos poderosos se manifestou porque Deus escolheu um grupo de escravos para conduzi-los à liberdade. As perambulações pelo deserto serviram de base para interpretar a perda da independência nacional como um momento importante para aprender com Yahweh a ser livre.

     Este foi o momento repensar novamente a vida e considerar como poder ser mais fieis à sua própria identidade. As respostas não foram unânimes. Por um lado, estava claro que havia a necessidade de um guia, então diferentes códigos legais foram produzidos para lançar as bases de uma futura nação. Algumas leis mais próximas do código de Hamurabi, outras baseadas na santidade cultural do povo, outras determinadas a colocar um limite à monarquia; cada proposta foi apoiada, com certeza, por grupos diferentes, e nem sempre eles foram consistentes entre si. O interessante sobre todas essas propostas é que elas estão espalhadas por todo o Pentateuco, a Torá dos judeus; nenhum código foi rejeitado, porque tudo o que havia de bom neles foi mantido. Mas não estamos diante de uma simples coleção de leis, mas de uma composição contendo histórias que vão desde o início dos tempos até o agora em que Israel está prestes a entrar na Terra Prometida.[9] Uma terra que, no entanto, deve ser conquistada e forjada à luz da fé.

     A morte de Moisés, o salvo das águas, deixa claro que uma geração tinha passado (aquela do exílio?) E surge uma nova (aquela do pós-exílio?). E, novamente, a tarefa de reconstruir o que foi demolido e erguer o que não foi feito está diante dos olhos.

Realismo ao recontar e reinterpretar a história

     Nem tudo, entretanto, nos livros da Bíblia é preto ou branco. Uma das principais características das histórias bíblicas é a descrição do ser humano de forma realista, principalmente no que se refere aos escolhidos por Deus para realizar seu projeto de vida. Desde o início da Bíblia, os personagens principais não são necessariamente exemplos de virtude. Abraão se apresenta como uma pessoa que tem medo, que engana o Faraó do Egito e Abimelek dizendo que sua esposa era sua irmã e oferecendo-a para os haréns desses governantes. É Deus quem tem que agir para que a verdade apareça. Abraão se lamenta com Deus, acredita, mas se desespera; ele concorda em ter relações com a escrava de sua esposa, mas seu filho primogênito não herdará sua propriedade, porque Deus quer tirar um filho de uma mulher estéril. Deus promete descendência imensa, mas Abraão só teve dois filhos. Seu neto Jacó é um canalha que apropria do direito de primogenitura de seu irmão por meio de um engano. Os irmãos de José o vendem por inveja, Davi comete adultério, Elias mata os profetas de Baal sem uma ordem divina, Jeremias se desespera e deseja nunca ter nascido e disse que seria melhor ser sido um aborto. Histórias como essas são abundantes na Bíblia. Por que tanto realismo e não solo elegias de glória? O ser humano é sempre projeto ambíguo é a conclusão mais lógica quando a Bíblia é lida.

     Os grandes projetos de reconstrução posexílica, entretecidos no Pentateuco, tiveram que ceder com à chegada dos gregos. Outro mundo se abria para os judeus. De um lado, o desejo de universalização e, de outro, a necessidade de fechar-se novamente para se proteger. Os grandes símbolos de identidade revelaram ser o templo e a fidelidade à Torá. Para se salvar das ameaças selêucidas, uma aliança foi estabelecida com Roma e, assim, Judeia tornou-se um estado vassalo novamente. A cultura grega, no entanto, não deixou o judaísmo imperturbado. Uma nova corrente de pensamento começou a moldar a consciência e o comportamento dos judeus que, desde os tempos do exílio, começaram a viver fora da Palestina.

     Foi nessa época que surgiu a necessidade de traduzir o TANAK para o grego, o que deu origem à Bíblia dos LXX. Novas obras judaicas, escritas em grego, começaram a repensar a tradição de Israel a partir das categorias filosóficas ocidentais, mas sem abandonar a visão particular e original judaica: para estas obras, toda a sabedoria é medida na capacidade de ter um pensamento para gerar autenticidade e tranquilidade. Ao contrário do pensamento abstrato, a σοφία hebraica busca na experiência os critérios para julgar o mundo e tirar conclusões existenciais. Deus não é uma abstração de um λόγος primordial, mas é comunicação. Mais uma vez, a ideia de encontrá-lo se concretiza no vivido, que acaba sendo o húmus para pensar e agir. As categorias gregas são antropomorfizadas para indicar sua dependência de Deus como suas criaturas. Reaparecem também referências ao êxodo, aos patriarcas, à origem do mundo e à relação entre as pessoas.

     Nesta nova era, as categorias abstratas não são entendidas como descrições absolutas e perfeitas do real, mas como categorias que têm contraexemplos válidos e verdadeiros. O contraste antagônico é preferido à singularidade dos discursos; a diversidade que provoca o diálogo, à singularidade que tende a ser uma resposta inequívoca e até opressora. A vida humana caminha entre luzes e sombras, mas acompanhada por Yahweh que ajuda a equilibrar as coisas e os tempos.

E Yahweh se fez história

     A coleção que inclui o Novo Testamento tem um duplo aspecto hermenêutico: as tradições do Antigo Testamento de Israel e a vida de Jesus de Nazaré. Alguns dizem que o Novo Testamento é um comentário sobre o Antigo, outros que o primeiro é a superação do segundo. Ambas respostas estão erradas. Como sempre na Bíblia, há releituras e novidades. O interessante é que as cartas de Paulo e os relatos dos Evangelhos sempre têm que se referir aos textos do Antigo Testamento para interpretar a vida de Jesus; mas, por outro lado, eles insistem que a única maneira de entender Yahweh é por meio dele. Ou seja, o encontro com Yahweh na história termina na convicção de que ele participa da história ao lado dos homens como um deles.

     Esta coleção, segundo a pesquisa histórico-crítica, foi formada a partir de um núcleo teológico: Jesus morreu na cruz e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras. O que parece para ser solo uma afirmação tradicional e normal para todo cristão, na verdade é uma premissa interpretativa que está ancorada em dois fundamentos: a experiência histórica dos que conheceram a Jesus e a história de Israel interpretada no Antigo Testamento e relida à luz da vida de Jesus. Isso significa que a afirmação essencial da fé cristã pode ser entendida a nível literário na consideração de sua estrutura semântica,[10] que poderíamos delinear assim:

 

Morte de Jesus - Ressurreição - História interpretada de Israel

 

     Note-se que a confissão na ressurreição de Jesus só faz sentido se a experiência de vida dos seus discípulos está diretamente ligada ao conjunto de textos que, de modo diversificado, interpretam a história de um povo. Estamos perante uma forma de ver a vida que tem a ver, não só com uma série de acontecimentos do passado, mas com uma avaliação dele que nasce da experiência de superação das injustiças. A ressurreição é certamente uma confissão de fé, mas também uma forma de compreender a dinâmica histórica. Jesus não morreu de velhice, foi condenado pela autoridade romana, instigado pelos mais importantes círculos sacerdotais e religiosos de Jerusalém.

     O Novo Testamento tem sua origem em um drama humano, que se refere à existência de uma pessoa. Por outro lado, essa vida é cheia de relacionamentos com outras pessoas, sejam elas colaboradores, inimigos, líderes, cidadãos palestinos ou romanos. Ou seja, o Novo Testamento tenta expressar uma continuidade de pensamento entre a coleção de livros da TANAK e da Bíblia dos LXX, e a experiência vivida com Jesus. É uma forma de incluir diferentes visões de vida, mas também de tornar clara a realidade do encontro com o Senhor. A novidade que oferece é que Yahweh se relaciona como pessoa humana, com uma experiência vital e com uma percepção particular do encontro que Israel teve com Deus no passado. O ponto alto de toda a história de Jesus é que ele foi condenado por sustentar que Yahweh intervém na história da humanidade a partir de uma perspectiva particular: oferecendo a possibilidade de criar mais vida e libertar todos aqueles que sentem sua existência diminuída por fatores externos e opressores.

     Esta participação de Deus na história como ser humano traz consigo a introdução de uma nova realidade, que leva o nome de ressurreição. Jesus, embora condenado, não é uma vítima falhada na morte, porque toda a sua existência (na linguagem tradicional, mas não para aquela bíblica: a sua vida espiritual e corporal) superou a violência a que foi submetido com o amor e a doação total de se mesmo. Isso implica, portanto, uma nova percepção do encontro com Deus na história. Primeiro, porque implica uma nova responsabilidade para os seguidores de Jesus no mundo e, segundo, porque Deus trabalha por meio de Seu Espírito para construir junto aos humanos um novo mundo sem morte e opressão, que transcende a temporalidade e a fraqueza das ações humanas.

     É interessante que o último livro da coleção do Novo Testamento está cheio de simbolismos e evocações de todo o conjunto dos livros bíblicos. Ele se introduze como uma comunicação a cristãos concretos que sofrem perseguições e que, apesar de seus esforços para permanecer na fé, também experimentam as contradições típicas de cada ser humano. Mas quem fala com eles é Jesus, que superou as adversidades e pede confiança e coragem. As visões que se sucedem evocam a história do Êxodo, que ilumina a relação que existe entre as vicissitudes que os homens enfrentam na terra e a proximidade do mundo celestial com essa realidade. O livro termina com um grande encontro, onde quem passou pelas atribulações da história é acolhido numa nova cidade oferecida por Deus como lugar de plena comunhão. O grande dragão do mal e as destrutivas bestias (ao estilo da sucessão dos impérios no livro de Daniel) são superados por um cordeiro que foi morto, que ofereceu seu sangue para que os homens para recuperam a esperança e o desejo de continuar lutando, movidos pelo Espírito divino, para transformar a realidade histórica.

Um mundo onde muitos mundos se encontram

     Esta breve viagem, que de forma alguma é exaustiva, nem enfrenta os grandes desafios interpretativos de todos os textos bíblicos, quis deixar várias coisas claras. A Bíblia é complexa porque fala sobre a vida humana de muitas maneiras diferentes. É um esforço enorme para dar sentido à sucessão dos acontecimentos, não como uma abstração ideológica, mas como uma tentativa de mostrar que a história é composta de experiências individuais, relações interpessoais, vidas comunitárias ou nacionais, confrontos internacionais e influências ideológicas dialéticas, variadas e enriquecedoras.

     Não encontramos na coleção de textos bíblicos o desejo de impor um pensamento único, mas de dar espaço a diferentes vozes. Não importa que sejam heróis, ladrões, pessoas honestas ou desonestas, reis ou plebeus. Também não oferece uma visão fechada dos sucessos e glórias de uma nação, mas fala de fracassos, corrupção, interesses ou inveja que geram conflitos terríveis e dolorosos. Nessa história surgem vozes de denúncia, oposição, desejos de reforma e sonhos de futuro. Somos informados de projetos de nações, de tentativas de mudar as coisas e de quedas caídas nos mesmos lugares. Em suma, a vida humana é retratada a partir de sua grandeza e de sua miséria, de seu amor altruísta, da paixão dos amantes e dos planos maquiavélicos de quem só pensa em si mesmo.

     Também vemos nela símbolos, ideias, leis, práticas religiosas e sistemas políticos inspirados por diferentes povos. Em seu buscar, os autores bíblicos usam a experiência de outras pessoas para compreender suas próprias vidas e os desafios que têm de enfrentar. Não hesitam em aceitar o que se mostra bom, rejeitam as pretensões da manipulação ideológica nascida do poder, mas também reconhecem que o poder é uma tentação permanente para uma criatura frágil, que às vezes finge ser Deus.

     E fala-nos de um encontro, com a origem de toda a vida e de todo o bem, que se aproxima por iniciativa própria para dizer que é Yahweh: aquele que se manifestará, aquele que estará presente, aquele que não pode ser manejado ou convertido em um fantoche do poder despótico, porque ele é totalmente livre e soberano. Os homens só se dão conta da sua presença porque o veem por trás, como Moisés, mas sabem que é um fogo ardente que não consome, é uma brisa delicada em momentos de angústia e de determinada provocação para ir além do que foi conquistado. Deus nos parece terno e duro, conhecedor do que há de mais íntimo no homem, mas capaz de fazer dos mais corruptos portadores de vida para os outros.

     Um Deus que, no seu desejo de comunicar, se faz homem e experimenta o que o homem vive na sua própria carne. Ele desejou viver em primeira mão o que significa enfrentar a morte atroz e despiedada, nascida do ódio e da ânsia de domínio. Ele é um Deus que une, que não faz guerra, que liberta e que ensina. Uma tempestade, como descreve o livro de Jó, mas que dá razão aos homens que, como Jeremias, se sentem abatidos pelo peso de sua palavra exigente. Um Deus que no final do seu sofrido drama como condenado à morte, envia os seus ao encontro com outras pessoas, com outras culturas e povos, para contar-lhes a experiência que os seus pais e eles mesmos viveram, ajudando-os a aprender a abrir-se a um novo desafio que se lhes apresenta: reconhecer a beleza de um mundo ainda desconhecido.

 

 

[1] A palavra "Bíblia" é pregada de várias maneiras. Primeiro, temos a TANAK, ou Bíblia Hebraica, que é composta de livros escritos principalmente em hebraico com algumas passagens em aramaico: esta coleção se refere aos livros que “mancham as mãos” na tradição judaica, o que indica seu valor sagrado. A TANAK é composta pela Torá (lei), pelos Nebi'im (profetas) e pelos Ketubim (Escritos). Em segundo lugar, temos a Bíblia dos LXX, que é uma tradução grega dos livros que compõem a TANAK, com a inclusão de alguns outros textos que não estão na Bíblia Hebraica. E, em terceiro lugar, temos a Bíblia cristã, que consiste dos livros do TANAK e do Novo Testamento, na tradição protestante, e, na tradição católica, também estão incluídos os livros da Bíblia dos LXX que não se encontram na TANAK. Em um nível técnico, os textos que compõem a Bíblia dos LXX junto com aqueles do Novo Testamento são conhecidos como a Bíblia Grega.

[2] Entendemos por "ideologia" um conjunto sistemático de ideias que são propostas como descrições válidas do real, a fim de direcionar as ações humanas para algum fim específico.

[3] Cultura é entendida neste artigo em um sentido amplo, como qualquer esforço que procura encontrar um sentido para a existência por meio de signos (linguagens), sistemas (costumes, rituais, organizações sociais) e modificações do ambiente (trabalho, relações intergrupais, sistemas de administração coletiva).

[4] Este não é o momento de falar sobre os processos de "canonização" dos textos bíblicos. No entanto, esta é uma terminologia cristã, que tem apenas uma semelhança externa com a definição dos textos que "mancham as mãos" na tradição judaica. É importante destacar que, a partir da definição pela autoridade eclesiástica dos limites dessa coleção, a Bíblia passou a ter um significado particular: começou a ser chamada “Escritura”, nome que implica seu caráter comunicativo por excelência. Essa categorização teve uma influência decisiva ao longo da história do Ocidente. Cf. A. Paul, La Biblia y Occidente. De la Biblioteca de Alejandría a la cultura europea (Estella, Navarra 2007).

[5] Referindo-se a este texto, apenas no final alguns encontram uma referência mínima a Deus, mas seria uma apócope usada como um sufixo verbal. Embora esta seja uma possibilidade gramatical, o fato é que as mesmas letras são usadas para o sufixo da terceira pessoa feminino singular, então a referência do versículo não é Deus, mas a amada do poema. Preferimos esta solução, porque a compreensão do texto é muito mais fácil do que no caso em que se opta por uma alusão a Deus, já que se referiria a uma simbologia presente nos salmos e inspirada pelo deus da tempestade. No segundo caso, se referiria ao orgasmo feminino, muito mais em consonância com as imagens eróticas da obra. Com tudo, é interessante notar que a ambiguidade morfológica implicaria a possibilidade de novas interpretações literárias.

[6] A palavra história também pode ser entendida como a criação ficcional e literária de uma série de acontecimentos, que tendem a expressar e resolver uma série de conflitos e que implica desenvolver um processo interpretativo por parte do leitor.

[7] Dois princípios básicos estão unidos na composição dos textos: preservar o que foi recebido e oferecer atualizações para outros novos contextos. Essa preocupação criou uma combinação verdadeiramente única no resultado literário final. É possível vislumbrar nos textos uma grande variedade de mãos e visões do mundo que fazem parte da estrutura literária, mas a sua dissecção é impossível, porque as tentativas de reconstruir as adições ou interpretações dos documentos "originais " tem sempre mostrado frágeis e hipotéticas. Não por isso, o processo deve ser descurado, porque nos oferece critérios de compressão únicos e importantes para determinar o significado de um espírito na constituição da coleção.

[8] Observe alguns elementos semelhantes deste profeta com Noé. Quando o mundo chegou ao fim da corrupção, Deus o enviou para salvar toda a criação numa arca. Moisés salvou-se das águas navegando em uma cesta. Noé deu à luz a nova humanidade, Moisés ao novo povo.

[9] Não entramos no problema das origens do Pentateuco e suas possíveis inicios como um Tetrateuco, Hexateuco ou Heneateuco.

[10] Aqui não nos referimos aos diversos enunciados da confissão cristã encontrados no Novo Testamento, mas partimos de uma abstração que nos permite diferenciar os pontos essenciais em um nível semântico, tudo para fins exemplares.

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