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24 Janeiro 2019

A conversão de São Paulo

Escrito por  OFMConv-Notícias

“Eu sou judeu, de Tarso da Cilícia, cidadão de uma cidade de renome (At 21,39), circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus. Segundo a Lei, fariseu… pela justiça da Lei, considerado irrepreensível (Fl 3,5-6).

 

Esta é a ficha que faz Saulo Paulo de si mesmo.

Como quase todos os judeus que viviam no mundo grego, acrescentara ao próprio nome judeu – Saulo ou Saul – outro nome grego que, quanto possível, se lhe assemelhasse foneticamente: Paulos, ou seja, Paulo.

Tarso era uma cidade culta, mas é de se supor que seus pais, fariseus recém-emigrados da Palestina, continuaram a estrita observância judia, abstendo-se de enviar seu filho às escolas gregas. O certo é que, tão logo completados os quatorze anos, Paulo foi enviado à Jerusalém, para fazer estudos rabínicos na escola mais ilustre da época: Aos pés de Gamaliel (At 22,3). Alguns autores, deixando-se levar por uma fantasia completamente infundada, supuseram que Paulo, em sua juventude, tenha levado vida licenciosa e, para isto, aduzem a trágica descrição que, na primeira pessoa, ele mesmo faz, no capítulo 7 da “Carta aos Romanos”.

Todavia, parece que o que Paulo quer destacar ali não é sua vivência pessoal e individual, mas a trágica situação do próprio “eu” humano, envolto na desgraça coletiva de uma pecaminosidade estrutural. Por outro lado, temos em suas próprias cartas afirmações sinceras e humildes sobre a conduta irreprovável que o jovem israelita observou sempre, em sua boa fé. Fariseu desde jovem (At 26, 3-5), observador das tradições judaicas (Gl 1,14), irrepreensível em sua conduta (Fl 3,6).

O fariseu de direita – Hoje, graças às recentes descobertas de Qumrân, estamos em melhores condições de enfocar histórica e ideologicamente os acontecimentos que deram origem ao surgimento do cristianismo. Através da numerosa literatura religiosa, encontrada às margens do Mar Morto, conhecemos o estado religioso daquela interessante época.

A “direita” constituíam-na os fariseus, conservadores das velhas tradições de Israel, inclusive das mais significativas minúcias rituais. Eram integristas e se consideravam os expoentes autênticos e indiscutíveis das mais puras essências religiosas e nacionais. Para isto, a ordem religiosa se identificava com a situação sociológica. Seu sistema se podia qualificar de “nacional-judaísmo”.

Não obstante, apesar de seu alardeado nacionalismo, haviam chegado a um status quo em suas relações com o poder romano, regendo-se por um equilibrado modus vivendi que lhes permitia certa estabilidade e flexibilidade de movimentos. Todavia, os fariseus eram somente minoria, ainda que numerosa, do povo israelita. E é isto que o sensacional achado de Qumrân veio iluminar. Completamente à margem da fração farisaica, pululava uma multidão de seitas, uma das quais denominada, por Flávio Josefo e por Plínio, “essênia”.

O núcleo central deste tipo de seita era constituído por um grupo de homens célibes, que se retiravam para o deserto, para se dedicarem à vida de oração e de estudo da Lei. Eram autênticos monges, cujas regras e modos de vida influíram, sem dúvida, na própria organização do monacato cristão, que nasceu exatamente naqueles mesmos desertos palestinos e egípcios.

Em redor dos mosteiros, e espiritualmente ligados a eles, havia numerosos assistidos, que bem podiam ser comparados às “ordens terceiras” de nossas grandes ordens mendicantes ou aos “sócios benfeitores” de congregações e institutos religiosos. Nem sempre viviam ali; iam e vinham, fazendo uma espécie de exercícios espirituais, que vivenciavam no resto do ano.

Pelas descobertas de Qumrãn, sabemos que ali existiu um grande mosteiro, talvez o mais importante de todos, e do qual encontramos uma espécie de sucursal em Damasco, constituída por alguns monges fugidos de Qumrân em época de perseguição. A espiritualidade “qumrânica” era diferente da farisaica. Sem serem abertamente cismáticos, afastavam-se do legalismo ritual e estreito do culto do templo de Jerusalém, sobre o qual se encontram finas e veladas críticas em suas regras e livros ascéticos.

Diante do orgulho farisaico, professavam uma humildade desconfiada de si mesmos e fortemente baseada num sentimento de absoluta dependência do Criador. Finalmente, eram de tendência universalista e aberta aos demais povos não israelitas. Saulo militava abertamente na ala extrema do farisaísmo mais estreito e ortodoxo e, no círculo intelectual hierosolimitano, assistira mais de uma vez às ásperas críticas que se faziam freqüentemente àqueles inovadores populares, perigosos para a ortodoxia.

Quando, mais tarde, Saulo volta a Jerusalém e se defronta com o problema da nascente comunidade judeu-cristã, sua indignação chega ao paroxismo. Exatamente os judeu-cristãos, procedentes do movimento “qumrânico”, que, de algum modo, coincidiam com os que Lucas denominava “helenistas” (At 6,1), foram os que diretamente se converteram em alvo de suas iras. Seu chefe era o jovem levita Estêvão. O discurso do protomártir, que Lucas nos refere (At 7, 2-53), é farto das idéias centrais do “qumranismo”, sublimadas e superadas numa esplêndida e originalíssima versão cristã.

Decididamente, Estêvão era um elemento demasiado perigoso e, nas reuniões conciliares da “direita” farisaica, chegou a tomar a decisão de que a própria sobrevivência de Israel estava gravemente ameaçada e que, por conseguinte, era preciso eliminar, pela violência, quem assim minava sua própria existência. Definitivamente, Estêvão foi apedrejado: única pena que as autoridades nacionalistas podiam infligir, quando se tratava de um caso declarado de “blasfêmia”.

Durante a macabra execução, os apedrejadores, para ficarem mais livres, puseram suas vestes aos pés de um jovem chamado Saulo (At 7, 58). O próprio Paulo orava, mais tarde, Senhor enquanto era derramado o sangue de tua testemunha, Estêvão, eu estava presente, de acordo com eles, e guardava as vestes daqueles que o matavam (At 22,20).

Saulo se converteu na peça-chave da primeira perseguição à Igreja nascente, persegui de morte esta doutrina, acorrentando e encarcerando homens e mulheres (At 22,4). Isto, naturalmente, produziu uma fuga dos cristãos, sobretudo dos da “ala esquerda”, que se refugiaram em Damasco, onde haveria, certamente, cristãos de tipo “qumraniano”. Saulo lutava inteligentemente e dirigiu seus ataques a Damasco: era preciso impedir decididamente que rebrotasse aquela semente envenenada. O resto dos judeu-cristãos não foi molestado e pôde permanecer em Jerusalém.

 

Caminho de Damasco – O que aconteceu no caminho de Jerusalém a Damasco, conta-o o próprio Paulo, simplesmente assim:

Recebi cartas do Sumo Sacerdote e de todo o colégio dos anciãos para os irmãos de Damasco, aonde fui com o fim de prender os que lá se achassem e trazê-los acorrentados para Jerusalém, onde seriam castigados. Ora, estando eu a caminho e aproximando-me de Damasco, pelo meio-dia, de repente me cercou uma intensa luz do céu. Caí por terra e ouvi uma voz, que me dizia: ‘Saulo, Saulo, por que me persegues’? Respondi: ‘Quem és, Senhor?’E ele me disse: ‘Sou Jesus Nazareno, a quem persegues’. Os meus companheiros viram a luz, mas não ouviram a voz daquele que me falava. Eu disse: ‘O que hei de fazer Senhor?’ O Senhor me disse: ‘Levanta-te e entra em Damasco, que ali te será dito o que deverás fazer ‘(At 22,5-10).

Saulo obedeceu. Era muito difícil o que se lhe exigia. Convertendo-se ao cristianismo, teria preferido ser recebido pela “ala direita” da “seita”, ou seja, por aqueles que ficaram em Jerusalém e foram tolerados pelo tribunal fariseu de depuração, de que ele era parte principal. Mas, agora, ordenava-se-lhe receber o ingresso da “seita” naquele ambiente de Damasco, plenamente solidário com os “helenistas” (At 6,1), que comandara o odiado Estêvão. A esta dura renúncia se refere, sem dúvida, quando, depois de fazer sua própria ficha, acrescenta, cheio de nostalgia pegajosa: Mas tudo isto, que para mim era vantagem, considero desvantagem por amor de Cristo (FI 3,7).

Esta transformação dolorosa de sua postura mental constitui indubitavelmente a infra-estrutura psíquica daquela atitude combativa, às vezes violenta, que teve que adotar, no seio da comunidade cristã, contra seus antigos correligionários fariseus, que pretendiam manter, dentro do cristianismo, uma posição integrista, sufocando a novidade expansiva do Evangelho.

O noviciado do apóstolo – A princípio, Paulo começou a experimentar sua vocação apostólica pregando a Jesus nas próprias sinagogas de Damasco. Mas, pouco depois, se retirou para o deserto, para ali se preparar, na oração, e quem sabe se uniu a algum grupo monástico judeu-cristão, procedente da “Seita da Aliança”, intimamente aparentada como movimento “qumrânico”.

Daqueles primeiros anos, narra-nos Lucas alguns fatos cruciais do novel apóstolo. Ao fim de três anos de conversão, subiu a Jerusalém para “visitar” o chefe da Igreja, Pedro (GI 1,18). Dali, voltou a sua cidade natal de Tarso, de onde teve que sair, finalmente, para se defender de uma conjura, tramada pelos judeus contra ele.

De Tarso, dirigiu-se Paulo a Antioquia, cuja comunidade florescia, devido, em parte, à própria perseguição do ex-fariseu. Na verdade, em conseqüência da rajada de vento anticristã, provocada por Saulo em Jerusalém, muitos cristãos “helenistas” se dispersaram pela Fenícia, Chipre e Antioquia. Estes começaram a pregar a fé. Posteriormente, os apóstolos de Jerusalém enviaram Barnabé, como delegado oficial, e este, seguindo uma inspiração do Espírito, associou-se a Paulo, em sua tarefa apostólica. Por um ano inteiro, Paulo colheu uma messe tão abundante que o fato transcendeu o grande público e este começou a chamar os fiéis pelo nome de “cristãos”, como eram chamados “pompeanos” ou “cesarianos” os partidários de algum dos dois rivais do Império.

A carreira apostólica de Paulo chegara a seu ponto culminante e nele se realizariam os projetos de Deus, manifestados desde o primeiro momento de sua conversão: Vai, porque este homem é para mim um instrumento escolhido, a fim de levar meu nome perante as nações, os reis e os israelitas (At 9,15). Um dia, na assembléia litúrgica de Antioquia, o Espírito falou por meio da mesma comunidade de oração: Separai-me Barnabé e Saulo, para a obra a que os chamei (At 13,2).

 

Texto do livro “O Evangelho de Paulo”, de José Maria González Ruiz, publicado pela Editora Vozes.

 

Fonte: Franciscanos.

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