Entrevistas

21 Março 2019

O ambiente virtual exclui a frustração. A desconexão é algo essencial. Entrevista especial com Rodrigo Ratier

Escrito por  Por: IHU - Patricia Facchin | 21 Março 2019

Como o senhor analisa o caso do massacre em Suzano?

Rodrigo Ratier* – Não podemos cair num alarmismo como se houvesse uma epidemia psicológica que está se alastrando de uma forma inexorável. Esses casos têm crescido, mas ainda são casos isolados e que acontecem por uma série de fatores, entre os quais destacaria uma tendência para a psicopatia, pelo menos de alguns dos participantes, mas não excluiria também dois outros fatores: a facilidade de acesso a armas — essa uma correlação que está bastante estabelecida, ao menos nos EUA — e a presença facilitada de possíveis fontes para a radicalização desses jovens que acabam se tornando homicidas. Chamaria atenção para o não supervisionado conjunto de mídias digitais que está à disposição de jovens e adolescentes hoje em dia.

O que esse episódio indica sobre as relações interpessoais nas sociedades contemporâneas?

Rodrigo Ratier – Falo a partir do lugar do pesquisador, mas também me preocupo enquanto pai de duas meninas, uma de quatro e outra de um ano. Vou iniciar falando da minha experiência pessoal: passeio muito com meus filhos, vamos a clubes, teatros, parques etc., e muitas vezes estou nesse lugar do pai que, enquanto a criança está brincando ou prestando atenção numa atividade, está no celular. Hoje, muitas pesquisas no campo da medicina e da biomedicina mostram que estamos diante de um vício: procuramos o celular a cada momento de tédio. Há uma ideia de que estamos perdendo alguma coisa se não estamos conectados o tempo todo.

tecnologia está tirando um pouco do nosso foco nas pessoas. Uma vez eu estava em casa olhando o celular e a minha filha de quatro anos disse: “Papai, você não sai do celular”. Esse foi um dos momentos que me chamou a atenção para a necessidade de se desconectar. Comecei a pesquisar como as áreas da comunicação e da educação tratavam desse aspecto e descobri uma bibliografia rica, que apresenta a maturidadecomo uma das competências midiáticas. Maturidade é basicamente isto: saber quando se conectar e saber quando desconectar. Penso, então, que a desconexão é algo essencial. Essa é uma experiência etnográfica que qualquer um pode fazer. Veja nos restaurantes e no transporte público quantas pessoas estão conversando e quantas estão no celular. A tecnologia tirou bastante o espaço da relação interpessoal, mas o contato é fundamental.

Em artigo recente [Tragédia em Suzano: é preciso repensar o papel do celular em nossas vidas] o senhor chamou atenção para o fato de que o caso que ocorreu em Suzano é um chamado à responsabilidade coletiva sobre a formação infantil e adolescente, mas para isso os membros da sociedade não podem estar ensimesmados com o brilho das telas de seus celulares. O uso das tecnologias e redes sociais têm dificultado a percepção dessa responsabilidade coletiva? Por quê?

Rodrigo Ratier – Num certo sentido, sim. Não quero demonizar a tecnologia, porque ela tem feito coisas grandiosas, como a possibilidade de comunicação instantânea. Além disso, a tecnologia abre portas para um potencial civilizacional muito importante. Mas, por outro lado, a forma como as tecnologias chegaram até nós tem contribuído para esse fenômeno. Primeiro, a portabilidade não era algo que estava previsto, pelo menos nas primeiras ideias de conexão. Muitos inclusive imaginavam que o lugar de conexão seria a tela da TV. Mas a tela da TV, de uma forma ou de outra, é uma tela mais social, porque mais pessoas assistem juntas e aí existe um outro tipo de relação, porque as pessoas podem conversar sobre o que estão vendo. O celular transformou essa experiência em algo muito mais individual e as trocas não necessariamente são com o grupo de convívio mais próximo, mas com pessoas que nunca se conheceram na vida.

Outro aspecto é a estruturação das redes por algoritmos. Essa solução tecnológica que grandes players como o Facebook conseguiram para manter as pessoas mais tempo conectadas as coloca em contato com opiniões com as quais elas concordam. As pessoas ficam conectadas porque ninguém gosta de ser contraditado o tempo todo. Ninguém gosta de alguém que diga “você está errado”, e a tendência é as pessoas abandonarem as discussões se elas forem muito prevalentes. O algoritmo é um lugar confortável para as pessoas. E o algoritmo levado às últimas consequências pode nos conduzir a processos de polarização e radicalização e as pessoas podem ser influenciadas por esses processos.

Além do uso exacerbado das tecnologias e das redes sociais, que outros fenômenos têm contribuído para a ausência dessa responsabilidade coletiva na formação dos jovens?

Rodrigo Ratier – Estamos falando de um fenômeno global da crise dos mediadores tradicionais. A família está em crise num certo sentido. Fala-se muito de famílias desestruturadas. Essa é uma terminologia de que não gosto, mas de todo modo a autoridade familiar — e também não quero soar conservador — e a influência familiar é menor do que já foi no passado. A mesma coisa pode-se dizer da escola, que tem atividades que não correspondem às formas como o jovem está acostumado a interagir. Qual é o jovem que aguenta hoje ficar duas horas ouvindo um professor falar em uma aula magistral, que é o modo como ainda damos aula na universidade? A mídia tradicional, de outro lado, nunca esteve tão desacreditada como hoje, e a mídia tradicional, num país que não tem uma cultura escolar muito forte como o Brasil, é importante na circulação de modos de agir, de categorias de pensamento, na construção do que é o nacional.

Então, todas essas instâncias que poderiam fazer parte da aldeia, digamos assim, estão enfraquecidas. Surgem outros atores que não são os atores tradicionais da aldeia e que não têm uma responsabilidade educacional clara. As redes sociais não têm na sua missão a tarefa de educar. A escola tem, a família tem, e a mídia num certo sentido também tem. Então, esses atores são enfraquecidos por uma conjunção de fatores: mudaram as relações familiares, a escola está numa crise de metodologia, a mídia tem uma crise de legitimidade e, nesse contexto, surgem outros atores que não têm a função de educar.

Qual o papel da escola e da família na educação de jovens e crianças hiperconectados? O problema da escola e da família é de método, de linguagem, de interação, de diálogo ou de quê?

Rodrigo Ratier – Há dois fatores que servem para ambos: um é a disponibilidade e outro é a recorrência. Os membros familiares estão menos disponíveis hoje do que no passado, ou porque têm que trabalhar ou porque estão absorvidos pelas tecnologias, e as crianças aprendem basicamente pelo exemplo. Podemos ter disciplinas sobre ética, mas no fim das contas a forma como agimos é muito mais influente para crianças e adolescentes do que o discurso. Mas esse exemplo, nas famílias, não está tão disponível.

Para a escola há um problema de metodologia, porque a escola ainda tem uma metodologia do século XIX e a estrutura ainda é aquela que mostra a diferença hierárquica entre professores e alunos. As carteiras são enfileiradas e a sala de aula não é um ambiente que possibilita o diálogo. Então, as escolas têm que se repensar em termos arquiteturais e metodológicos, porque muitas aulas ainda são baseadas no livro didático e muito pouco em pesquisas, debates e na construção de desafios, que é como os jovens e as crianças aprendem. A escola tem que favorecer a atividade mental e isso é feito propondo desafios, em que o professor entra para orientar e pode até usar a lousa para sistematizar, mas não pode usar a aula só para ficar falando na frente da classe. Não é assim que os jovens fazem hoje em dia: eles buscam tutoriais, fazem experimentos para saber como gravar vídeos.

A atuação dos jovens nas redes sociais é um bom exemplo de como a escola poderia se renovar para ter metodologias mais ativas. Também seria importante trazer para dentro de si as discussões que importam para os jovens. O trabalho escolar sobre temas como bullying e violênciaainda são trabalhos invisibilizados. Essas são questões para as quais precisamos de profissionais sensíveis e com olhar treinado para perceber o que está acontecendo na escola, a fim de trabalhar essas questões.

Um dos envolvidos no massacre em Suzano tinha abandonado a escola. O abandono escolar não é algo que acontece do dia para a noite. Quais foram os sinais que esse aluno foi dando de que ele estava progressivamente se desinteressando pela escola em geral? Existem formas de a escola alcançar esse aluno antes dele sair? A escola é um espaço seguro para a discussão de problemas como bullyingviolência e as temáticas da adolescência, que é uma fase muito difícil? É preciso uma gestão democrática de modo que os estudantes possam se colocar, possam sentir que ali é um espaço onde eles podem conversar e encontrar acolhimento.

Por que, na sua avaliação, jovens optam por se relacionar em grupos da internet em vez de se relacionarem com a família, por exemplo? O que eles encontram no ambiente digital, que não encontram em outras esferas ou instituições?

Rodrigo Ratier – O contato virtual é mais fácil do que o contato cara a cara no sentido de que as pessoas dizem no ambiente on-line o que elas não teriam, muitas vezes, coragem de sustentar no contato presencial. Isso porque o contato presencial nos coloca diretamente com a alteridade e, portanto, as pessoas estão numa posição de ouvir coisas com as quais não concordam. No contato virtual não tem essa ligação e não é preciso fazer essa mediação que envolve o gestual, as emoções, o tom de voz e pode, eventualmente, envolver até, nos casos mais extremos, a violência física.

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